Determinismos...
A discussão sobre determinismo, genético ou outro, é falaciosa.
É verdade que tanto cientistas como “homens das letras”, jornalistas e “homens de poder” contribuiram muito para a sedimentação daquela discussão, típica do meio académico, na opinião pública. As repercussões da aceitação de um determinismo genético foram devastadoras na primeira metade do séc. XX, com as leis eugenistas nos EUA ou o holocausto nazi. O debate seguiu extremado, a sua ideologização reflectida também no discurso da ciência. Um exemplo foi a crítica da Sociobiologia, de E. O. Wilson, por cientistas radicais marxistas como S. J. Gould. O debate explícito sobre determinismo genético tem vindo a ressurgir ultimamente devido aos receios do impacto da biotecnologia ligada à genómica no conhecimento da vida e do ser humano, e nos usos que daí poderão advir no melhoramento genético humano. Neste contexto, são fontes recentes interessantes alguns textos jornalísticos do último número da revista ComCiência ou uma discussão recente no blog do jornalista científico Marcelo Leite (Pílulas anti-deterministas do Dr. Leite - X). Alguns textos (ex: Do Holocausto nazi à nova eugenia do séc. XXI, de Andrea Guerra) parecem imbuídos de grande parcialidade, originada quiçá em posições morais ou ideológicas, levando à difusão (manipuladora?) de mensagens codificadas, sejam as das metáforas dos cientistas, sejam as traduções sintéticas daquelas metáforas por parte dos jornalistas.
A minha reflexão sobre a interseção de ciência, determinismo e jornalismo é a seguinte:
A realidade é complexa, não pode ser sintetizada por alguma teoria unificadora (física, matemática ou biológica). Assim como o discurso complexo da ciência não pode ser sintetizado em mensagens pseudo-científicas ou jornalísticas que sirvam à propaganda de qualquer conclusão científica.
A “verdade” em ciência é circunstancial, específica às condições da observação, dificilmente generalizável para além desse universo restritivo. É o problema da observação simplificadora de sistemas complexos. A perda progressiva da importância da formulação teórica grandiloquente e generalista, formadora de escola de pensamento, processa-se pelo bombardeio empírico multi-dimensional e multi-disciplinar, irredutível a teorias simplificadoras. É exactamente na exploração de sistemas complexos que reside a revolução em curso na ciência, com a necessária incorporação explícita da incerteza multi-dimensional na formulação e comunicação de modelos e teorias.
Daqui resulta que não é possível discutir seriamente a verdade absoluta alardeada por qualquer “verdade” científica (ou ideológica!). Certas discussões de tendência dicotómica como determinismo e o anti-determinismo (é curioso que não exista como teoria!?) ou esquerda versus direita, dão origem a falácias argumentativas, que não constroem conhecimento. Concluir que não podemos explicar simplisticamente a realidade e o que a determina, não significa que não existam mecanismos que a determinem, por mais complexos e aleatórios que sejam. Uma questão relacionada é o grau de (in)certeza na previsão do futuro, e é aqui que desde sempre assentou a discussão sobre determinismo. No medo de que o destino do ser humano estivesse irremediavelmente pré-determinado, o que limitaria o seu “livre arbítrio”. Felizmente, onde outrora se discutia a certeza hoje discute-se erro, acaso e probabilidade. Não que a realidade seja caótica, mas antes circunstancial. Determinismo probabilístico complexo? A alternativa seria o 'design inteligente' do universo!
O jornalista de ciência também se verá confrontado com o desafio: para cada matéria, apreender e transmitir a sua complexidade numa forma inteligível e digerível para o público. Cientista, jornalista e público deverão co-evoluír na forma como observam e divulgam a realidade perceptível à ciência. Talvez assim se evite tratar publicamente algumas questões científicas por vieses religiosos ou ideológicos. Afinal somos todos humanos e buscamos a salvação do Homem! Esta não deve ser buscada no discurso necessariamente hermético e truncado da ciência. A questão metafísica da tragédia humana deverá ser abordada através de uma visão pluralista dos diversos níveis do conhecimento humano. Por favor, retire-se essa responsabilidade dos ombros da ciência e da tecnologia!