28 fevereiro 2006

Conhecimento de si no espaço/tempo

Reflectindo sobre genes no espaço e no tempo e após curto-circuito cerebral... aí vai então o produto não polido da massa cinzenta esfumaçante.

O conhecimento assenta na relação espaço/tempo. Ele emana da apreensão da diferença que se desenvolve naquele domínio. A diferença é definida como classificação ao longo de escalas observacionais, que podem ser combinadas para definir objectos.

Assim, por definição, existe a dificuldade de conhecer a unidade ou o indivíduo por si só, se não pré-existir uma escala para comparação. Esta dificuldade tem implicações deveras interessantes ao nível do auto-conhecimento e do conhecimento do outro. No conhecimento do outro, igualdade/diferença entre dois objectos, numa escala necessariamente fractal, são sempre ilusórias, dependendo apenas da proximidade e ângulo observacionais. Pensemos por exemplo na dinâmica entre grupos sociais/culturais e como pré-existem escalas que enformam qualquer avaliação/comparação. Esta dependerá sempre do grau de proximidade a quaquer um dos objectos comparados relativamente um ao outro.

Mas quero divertir-me um pouco pensando no auto-conhecimento, isto é o conhecimento de nós próprios. Conhecemos quando comparamos. Isto leva-me a pensar no indivíduo e se a auto-análise é possível ou desejável. Se é desejável, não se me afigura um problema, pois só o não será se se torna impeditiva da aceitação da alo-análise (do, para e pelo outro) que possibilita a percepção e a tolerância do outro. Se é possível, parece-me uma questão muito mais interessante. Desde logo trata-se de um problema de consciência. A consciência de nós próprios emana da relação com o meio e com o outro (ver O Mistério da Consciência, de António Damásio, publicado pela Companhia das Letras). Seriam então as imagens reflectidas do processo de ação/reação com o meio e o outro que enformariam a consciência de nós próprios. O processo goza sempre de bi-direcionalidade (eu/outro). Esse espaço consciente de transformação do meio e do outro, que é intrinsicamente humano e individual, precisa tanto de ser observado/analisado pelo outro quanto por nós mesmos. Steven Pinker (Tábula Rasa, publicado pela Companhia das Letras) argumenta que a natureza humana indivídual resulta, em parte, de herança genética (inato) e aprendizagem ambiental/cultural (adquirido). Mas existe uma outra componente importante, não explicada, que representaria a contribuição única do indivíduo para a escala humana das diferenças individuais. Esta resultaria de uma interação única e estocástica entre inato e o adquirido, num processo acumulativo ao longo do espaço/tempo da vida do indivíduo. Penso que é aqui que a auto-análise é fundamental para resistir a que apenas a alo-análise nos posicione numa qualquer escala de natureza humana. Por que resistir? Porque o outro, da sua própria janela/posição/escala observacional, apenas vê a forma que assumimos, que pode ser mais ou menos próxima do verdadeiro conteúdo. A auto-análise pode tornar-se difícil ou quase impossível, pois a percepção de nós próprios é registada e definida, colocada num ponto da escala e aí fixada pelo outro e por nós próprios. Sem auto-análise, essa forma tornar-se-á no conteúdo que imaginamos/traduzimos pela nossa reflexão no outro. O processo é análogo à produção de um molde um objecto num determinado instante ou circunstância, sem que se tenha em conta outros moldes do mesmo objecto ao longo da sua existência no binómio espaço/tempo.


Ora, embora seja comum a vontade, própria e/ou alheia, de definir o indivíduo biologicamente uno na sua humanidade, ele é na verdade humanamente múltiplo. É da percepção de que existe, no próprio indivíduo, a diferença, o contraditório, o paradoxal, uma miríade de possibilidades (intrínsecas) de ação em cada circunstância, e do seu balanço relativamente ao mundo externo, que pode nascer o equilíbrio entre auto e alo-análise e a resistência à alo-auto-classificação. É este processo que nos pode colocar no devido lugar no espaço multi-dimensional das diferenças, e também libertar-nos dele. Se precisamos de nos contextualizar, num dado instante espaço/tempo, precisamos nos descontextualizar num outro instante, avaliando se a forma ainda corresponde ao conteúdo.

Um exemplo extremo da impossibilidade de evitar a alo-auto-classificação é quando um indivíduo comete um crime e é condenado. O condenado é despojado da sua liberdade de auto-análise, condenado à alo-classificação que pode ou não interiorizar-se como auto-classificação. O confinamento do indivíduo a esse estado depende da gravidade do crime, mas talvez interessasse reflectir sobre quantos criminosos circunstanciais (potencialmente, todos nós!), não poderão tornar-se criminosos convictos devido a um processo, ainda que temporário, de alo-análise-classificação impostas. Daí o cuidado justificado que existe na adequação da dureza das penas relativamente à gravidade dos crimes cometidos, principalmente em regimes democráticos. Mas temos de estar preparados para aceitar que existe uma grande variabilidade individual na capacidade dos indivíduos ultrapassarem uma situação de condenação com privação de liberdade. Alguns conseguirão libertar-se, outros condenar-se para sempre.


Voltando ao princípio, a questão é que o conteúdo (conhecimento da realidade, verdade) necessariamente evolui com o tempo. O tempo é o verdadeiro agente de mudança, e o espaço é circunstância. O espaço humano seria definido como as relações que estabelecemos com os outros num determinado meio (e.g. qualquer grupo de mais de dois indivíduos que actue num ou mais espaços físicos e humanos). Uma definição de consciência humana poderia ser a percepção crítica da evolução, ao longo do tempo, da nossa posição em escalas múltiplas que permitem estabelecer e definir relações com o meio, os outros e nós próprios. É desta consciência crítica que nasce o sentimento de sermos livres dentro das nossas circunstâncias. Pois esse é o ser que todos queremos ser. Humanos, apesar das circunstâncias.

Sempre resistindo ao espaço que nos enforma, e aos seus dogmas...com cautela, pois o equilíbrio advém de conseguir evitar as ilusões da auto- e alo-análise do indivíduo. Afinal, quem consegue mesmo ganhar o jogo das sombras e dos espelhos?


James Bond!

11 fevereiro 2006

Determinismos...

A discussão sobre determinismo, genético ou outro, é falaciosa.

É verdade que tanto cientistas como “homens das letras”, jornalistas e “homens de poder” contribuiram muito para a sedimentação daquela discussão, típica do meio académico, na opinião pública. As repercussões da aceitação de um determinismo genético foram devastadoras na primeira metade do séc. XX, com as leis eugenistas nos EUA ou o holocausto nazi. O debate seguiu extremado, a sua ideologização reflectida também no discurso da ciência. Um exemplo foi a crítica da Sociobiologia, de E. O. Wilson, por cientistas radicais marxistas como S. J. Gould. O debate explícito sobre determinismo genético tem vindo a ressurgir ultimamente devido aos receios do impacto da biotecnologia ligada à genómica no conhecimento da vida e do ser humano, e nos usos que daí poderão advir no melhoramento genético humano. Neste contexto, são fontes recentes interessantes alguns textos jornalísticos do último número da revista
ComCiência ou uma discussão recente no blog do jornalista científico Marcelo Leite (Pílulas anti-deterministas do Dr. Leite - X). Alguns textos (ex: Do Holocausto nazi à nova eugenia do séc. XXI, de Andrea Guerra) parecem imbuídos de grande parcialidade, originada quiçá em posições morais ou ideológicas, levando à difusão (manipuladora?) de mensagens codificadas, sejam as das metáforas dos cientistas, sejam as traduções sintéticas daquelas metáforas por parte dos jornalistas.

A minha reflexão sobre a interseção de ciência, determinismo e jornalismo é a seguinte:

A realidade é complexa, não pode ser sintetizada por alguma teoria unificadora (física, matemática ou biológica). Assim como o discurso complexo da ciência não pode ser sintetizado em mensagens pseudo-científicas ou jornalísticas que sirvam à propaganda de qualquer conclusão científica.

A “verdade” em ciência é circunstancial, específica às condições da observação, dificilmente generalizável para além desse universo restritivo. É o problema da observação simplificadora de sistemas complexos. A perda progressiva da importância da formulação teórica grandiloquente e generalista, formadora de escola de pensamento, processa-se pelo bombardeio empírico multi-dimensional e multi-disciplinar, irredutível a teorias simplificadoras. É exactamente na exploração de sistemas complexos que reside a revolução em curso na ciência, com a necessária incorporação explícita da incerteza multi-dimensional na formulação e comunicação de modelos e teorias.

Daqui resulta que não é possível discutir seriamente a verdade absoluta alardeada por qualquer “verdade” científica (ou ideológica!). Certas discussões de tendência dicotómica como determinismo e o anti-determinismo (é curioso que não exista como teoria!?) ou esquerda versus direita, dão origem a falácias argumentativas, que não constroem conhecimento. Concluir que não podemos explicar simplisticamente a realidade e o que a determina, não significa que não existam mecanismos que a determinem, por mais complexos e aleatórios que sejam. Uma questão relacionada é o grau de (in)certeza na previsão do futuro, e é aqui que desde sempre assentou a discussão sobre determinismo. No medo de que o destino do ser humano estivesse irremediavelmente pré-determinado, o que limitaria o seu “livre arbítrio”. Felizmente, onde outrora se discutia a certeza hoje discute-se erro, acaso e probabilidade. Não que a realidade seja caótica, mas antes circunstancial. Determinismo probabilístico complexo? A alternativa seria o 'design inteligente' do universo!

O jornalista de ciência também se verá confrontado com o desafio: para cada matéria, apreender e transmitir a sua complexidade numa forma inteligível e digerível para o público. Cientista, jornalista e público deverão co-evoluír na forma como observam e divulgam a realidade perceptível à ciência. Talvez assim se evite tratar publicamente algumas questões científicas por vieses religiosos ou ideológicos. Afinal somos todos humanos e buscamos a salvação do Homem! Esta não deve ser buscada no discurso necessariamente hermético e truncado da ciência. A questão metafísica da tragédia humana deverá ser abordada através de uma visão pluralista dos diversos níveis do conhecimento humano. Por favor, retire-se essa responsabilidade dos ombros da ciência e da tecnologia!